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Cruzada anti-gamer a todo vapor


Foi veiculada na madrugada de 25 pra 26 de Dezembro uma edição do programa Fala Que Eu Te Escuto cujo teor é perigosíssimo para um país que sonha ser a quinta maior economia do planeta até 2020 e que não quer mais ser visto comosubdesenvolvido. Através de uma reportagem tendenciosa formada por vários fragmentos de outras reportagens, a discussão caminhou para um rumo em que os jogos de tiro seriam grandes culpados da violência dos dias atuais. Assim sendo, e tendo em mente que vivemos em um país com suposta liberdade de expressão, também me reservarei ao direito de ser tendencioso para o lado gamer da história.

Podemos julgar, pra começo de conversa, a história recente da emissora que exibe o Fala Que Eu Te Escutoprograma que, apesar do cunho religioso, tem conquistado audiência cada vez maior por suas discussões de temas do dia a dia. A rede de TV em questão tem exibido novelas e seriados nacionais com teor violento desde o lendário Turma do Gueto, e mais recentemente com A Lei e o Crime. A emissora é culpada pela violência da sociedade? Ou seriam os seus produtos violentos reflexos da sociedade? Que responsabilidade a emissora tem pela violência em nosso país?essa última eu mesmo respondo: nenhuma. E por quê? Pela classificação etária, oras. Novelas e seriados com tiro vão ao ar às altas horas da noite em qualquer emissora aberta desse país, sempre acompanhados de classificação etária superior a 14 anos. Se alguma criança de sete anos assistir um policial sendo metralhado às onze da noite, a culpa já não é mais da emissora e sim dos pais ou responsáveis, que não estão exercendo a devida supervisão ao que os filhos assistem.

E só esse primeiro argumento já seria o suficiente para fazer cair por terra todo o trabalho de demonização exercido pela reportagem no programa supracitado. Casos de violência que teriam sidoinspiradospelos gamesviolentosforam mostrados com aquela típica trilha sonora estilo Aqui e Agora, e os casos iam desde dois policiais que foram assassinados por um rapaz de 17 anos que jogava GTA até outros dois adolescentes estadunidenses, também jogadores do GTA, que ficaram dando tiros em carros que passavam, até que um viesse a pegar fogo. O fragmento de reportagem, assinado pelo programa 60 Minutes, prosseguia afirmando algo quase inacreditável: os familiares dos policiais assassinados pelo rapaz de 17 anos processaram a Rockstar, produtora do GTA, a rede Wal-Mart, por vender o jogo e a Sony, fabricante do Playstation, por rodar o jogoprimeira falha do processo pois, como sabemos, GTA também tem versões para computador, ou seja, teriam que processar também todos os fabricantes de computador do mundo. A parte mais importante de tudo, é claro, não foi falada na reportagem: GTA já chega às lojas impróprio pra menores de 18 anos. Talvez, nesse caso, a única empresa que realmente merecesse levar processo fosse o Wal-Mart, por vender a um menor um jogo impróprio para menores. E olhe lá. Quem garante que não foi um adulto que comprou o jogo e deu ao filho?isso a reportagem não dizia.

Eis a grande cereja do bolo: boa parte da reportagem mostrava adolescentes que jogavam jogos de tiro e acabaram descendo bala em todo mundo, a exemplo do recente caso do jovem de 17 anos de Newtown, jogador de Call of Duty, que metralhou a mãe, os alunos dela e depois se matoumetralhou com a arma da própria mãe diga-se de passagem. Mas adolescentes não deveriam estar jogando tais jogos, e a própria indústria sabe disso. Nos Estados Unidos, os jogos saem de fábrica com um enorme selo escritoMATURE 17+” – que equivale ao nosso selo preto com o número 18 bem grandão e ao selo europeu de cor vermelha (imagem abaixo). E eu repito: se jogos assim vão parar na mão de crianças de oito anos, a culpa é dos pais que não exercem o controle que deveriam, ou da sociedade que permite que as classificações sejam ignoradas e os vendedores se guiem apenas pelo dinheiro.

A própria reportagem já falava de uma lei que tramita no Senado brasileiro, e tem como intenção proibir a importação de jogosviolentos” – ou seja, ao invés de produzirmos no Brasil, gerando renda, seremos impedidos até mesmo de comprar de fora. Tal lei era mostrada como algo bom pois, desculpa ter que avisar isso, mas no Brasil aimparcialidadeno jornalismo é uma utopia. Saberemos se uma lei dessas realmente é a salvação se ela for aprovada e continuarmos a ter nossosassassinos do Realengo.

É curioso que os Estados Unidos, um país onde as armas são compradas com uma facilidade burlesca, e cuja competitividade é ensinada desde o berçolamentavelmente inspirando o resto do mundovenha chorar suas pitangas em cima dos videogameslamentavelmente inspirando, etc. Os Estados Unidos são um país tão bizarro que óculos de grau e aparelho dentário são motivos suficientes para que uma pessoa seja vítima do famosobullying, mesmo se, de resto, forem consideradas bonitasou seja, estiverem dentro dos padrões de beleza. Os Estados Unidos são um país em que os valentões do colegial que roubam dinheiro do lanche dos mais fracos fazem parte da cultura pop, e são reforço de uma cultura que preza muito pela competição. Os Estados Unidos são um país tão bizarro, mas tão bizarro, que o marido atual tem direito, culturalmente falando, a humilhar o ex-marido de sua esposa se este último tiver menos dinheiro na conta bancária. Como um país em que a competitividade é tão exaltada e o altruísmo é tão esquecido pode reclamar de seus assassinos?

Os maníacos que entram atirando pra matar, em geral, são pessoas que tinham problema de relacionamentos. Que problemas? Ora, muitas vezes eram vistos como pessoasesquisitaspela sociedade altamente competitiva dos Estados Unidos, motivo primeiro que leva um jovem a ter poucos ou nenhum amigo. Na falta de uma sociedade que os acolhesse em seu seio, tais jovens acabaram canalizando tudo no videogame. Dessa maneira, passaram a ficar atirando em seus jogos por seis, oito, dez horas por diajogos proibidos para pessoas de sua idade, diga-se de passagem. Resultado: Tico e Teco fundiram, e já que comprar arma é fácil pra dedéu, eles foram lá, atiraram, mataram. E aí? Culpa dos games? Só dos games?


Os jogos de violência, bem como filmes de violência, seriados, novelas, livros, são reflexos da sociedade violenta, e não o contrário. Secomo dizem os místicosestamos entrando em uma era com cada vez mais paz a amor, ou se simplesmente seguirmos uma lógica evolucionista que repele a barbárie com o passar do tempo, logo podemos considerar que todas as obras intelectuais que usam da violência irão desaparecer com o tempo, de maneira naturalassim como já foi natural que mães devorassem seus recém-nascidos a algumas dezenas de milhares de anos atrás e hoje já não é maismas uma proibição não teria realmente efeito curativo. A proibição dos games tidos como violentos apenas tiraria esse público das lojas e o levaria às barraquinhas do camelô.

A pergunta é: afinal, o que é violento e o que não é? Os contos dos irmãos Grimm, por exemplo, acabaram de completar 200 anos, e são contados para criancinhas numa boa. Mas, afinal, devorar uma idosa e depois ter a barriga cortada por um lenhador não é das imagens mais pacíficas do mundo, não é Seu Lobo? E a Bruxa ao encomendar a morte de Branca de Neve não tá muito diferente de um chefe do crime de GTA. E o Chaves? O seriado mexicano mais brasileiro do mundo é tido comoprograma para toda a família, e já vi até uma religiosa de um canal de TV católico o considerá-lo assim, mas se formos analisar bem, o seriado é recheado de lesões corporais leves além de um sem-número de atitudes discriminatórias.

Aliás, se os jogos forem proibidos por serem violentos, porque a Bíblia não é proibida?assim como na China, cuja sua leitura não é liberada a menores de 18 anos. O processo de crucificação de Jesus, descrito na Bíblia, é narrado com detalhes de crueldade mas, ainda assim, no Brasil, sua leitura é liberada para crianças em tenra idade. Há ainda várias outras passagens violentas na Bíblia, que não me cabe enumerar. Quando adaptadas para a televisão, ganham uma classificação etária justa, geralmente superior aos 12 anos, outorgando aos pais a responsabilidade por ter seus filhos pequenos vendo pessoas se matando no deserto de Judá ou dormindo no quarto, mas quanto à sua versão impressa, nada protege os pequeninos de seu teor violento, a não ser o próprio desinteresse que as crianças já têm, naturalmente, pela leitura integral da Bíbliae a questão aqui não é o fato de a Bília ser sagrada e Call Of Duty não ser, mas sim, a violência presente em ambos, que é diferente em intensidade, mas não deixa de ser violência.

Passada a partemenor de idadeda história, é claro que temos uma parte maníaca, formada por gente adulta e bem responsável pelos seus atos, a começar por Andres Breivik, o assassino da Noruega, também citado na reportagem do Fala Que Eu Te Escuto. Pelo que diz a reportagem, as franquias de jogos Call of Duty e World of Warcraft foram proibidas no país, por terem sidoinspiradorasde Andres. Mas, calma lá: não foi comprovado que ele é neonazista e tem problemas mentais? Que culpa uma produtora de jogos tem pelos psicopatas do mundo? Quantos videogames Jack, o estripador jogou antes de cometer seus crimes? (Quem não entendeu essa última pergunta, vá à Wikipédia). Será que brasileiro que entrou atirando numa sala de cinema, supostamente inspirado por uma cena de um jogo em que o herói entrava atirando numa sala de cinema para matar alienígenas não tinha consciência de que não havia alienígenas ali?

Pra encerrar eu coloco em pauta, novamente, o tópico do processo catárticoIt's catarse, Mario! Ainda sou defensor do conceito de que o uso de jogos de ação – ou “violentos”, como preferir – podem ser uma maneira para liberar as tensões do dia a dia. Se você é uma pessoa acima dos 18 anos e tem o mínimo de vida social – pelo menos duas ou três pessoas pra chamar de amigo – você vai jogar jogos de tiro de vez em quando, umas três ou quatro horas, depois vai desligar seu console ou computador e vai sair pra comer uma pizza. Agora, se você é uma pessoa menosprezada na escola ou faculdade (tal como aquele assassino de campus coreano) e se sente profundamente rejeitado pelo mundo, o processo catártico não vai ser pleno. É como se, nesses casos, os jogos violentos esvaziassem um reservatório que é enchido muito constantemente – e é aí que originam-se os maníacos. O que não fazia que uma criança do século XIX saísse por aí com um machado na mão pra abrir a barriga de um lobo, mas faz com que um jovem saia por aí querendo dar headshot em quem encontra na rua é justamente o fato da sociedade ter se tornado muito, mas muito individualista e competitiva, e não é proibindo uns jogos que a sociedade vai se tornar melhor. Quantas são as crianças que são apresentadas ao altruísmo no pré-escolar, e quantas são apresentadas à competitividade no primeiro ano de escola?

O mundo sempre teve seus maníacos, pessoas dispostas a matar inocentes por uma causa que não dá pra compreender. Muitos são aqueles cuja predisposição a isso não é tão grande – para esses, uma sociedade justa e pais mais responsáveis já dariam conta do recado. Os pais não devem tirar os jogos de tiro de seus filhos menores de 18 anos, devem sim cuidar para que eles SEQUER VENHAM A TER esse tipo de jogo. Se os pais falham nesse quesito, vão exigir o quê depois? Os pais, ao invés de reclamarem que o filho de doze anos passa o dia inteiro dando tiros no computador e não tem amigos, deveriam cuidar para que o filho tivesse amigos e só quando este se tornasse maior, permitir que ele tenha um jogo de tiro.



William Ã© publicitário, roteirista, ator em formação e Sonicmaníaco. Curte  jogos de plataforma, mas não dispensa um GTA ou Mario Kart.

Cruzada anti-gamer a todo vapor Cruzada anti-gamer a todo vapor Reviewed by Mestre Risada Forçada® on 31.12.12 Rating: 5

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